terça-feira, 7 de dezembro de 2010

Então durma Anabella.


Às vezes questiono sua existência, mesmo sabendo que ela é real, e a vi de perto, às vezes ouso duvidar. Ela era intrigante. Aparentemente igual, mas completamente diferente. Aparentemente só mais uma jovem e, diga-se de passagem, uma bela jovem. Lembro-me de sua imagem sumindo na fumaça, como a fumaça some no ar. Naturalmente ruiva. Magra, mas com um corpo de enlouquecer. Anabella. Chamava-se Anabella. O nome era a única coisa que os caras sabiam sobre ela, mas até o nome mentia algumas vezes. Acho que ninguém nunca a conheceu de verdade, talvez ela nunca tivesse sido amada... Ou tenha sido muito amada. Na infância? Não, creio que não. O pai costumava ajudá-la na infância, costumava ser um bom pai. Mas quando descobriu sobre sua doença, afastou-se sem pensar no que ela sentiria. A mãe? Será que a mãe um dia existiu? Nunca teve tempo para a filha, sempre trancada no quarto com algum cara estranho, e era o que Anabella se via fazendo, repetindo os erros da mãe. Agora era ela quem encarava a si mesma em frente o espelho. Beleza física, mas nenhuma beleza interior. Levantou-se da cama enrolada em lençóis. Maldita ressaca, nem lembrava o nome do cara com quem dormira a noite passada. Nem sabia pra onde estava indo. Não lembrava quem era. Tentava lembrar-se de quando sua existência era útil, ou no mínimo aceitável. Costumava ser politicamente correta antes dos 14 ou 15 anos, até teve um namorado. Mas e depois? Ela ainda tinha amigos, sempre soube dar o ombro a quem quisesse chorar. Era doce, sabia dizer palavras bonitas. Sabia conseguir qualquer coisa, mas nada queria. Procurava pelos amigos, e não encontrava ninguém, graças aos seus erros. Erros tão insignificantes! Permanecer viva, esse era o único erro relevante.

Anabella colocou uma velha camisa enorme do ex, o único rapaz de quem ela realmente gostou. A camisa era a única lembrança ainda presente dele, que morrera há menos de dois anos. Suicídio ao descobrir que estava doente, e isso fazia Anabella sentir-se ainda mais culpada.

Saiu do quarto, sentou-se na varanda acompanhada de uma garrafa de vinho e um cigarro. Observava em silêncio a rua ainda molhada da chuva que caíra a pouco, a cidade era triste à noite. Acendeu o cigarro com as mãos tremulas e passou a pensar nos últimos meses, o que fez com que lágrimas lhe brotassem nos olhos e escorressem sem parar. Um trago, um gole de vinho. A fumaça lhe ardia os olhos e a garganta, mas pouco importava. “Malditas pessoas!” Pensava. Todos a crucificavam pelo aborto que fizera há duas semanas. Os pensamentos não paravam de invadir-lhe a mente, tanto a ponto de começar a falar o que pensava:

“Vida inútil, pessoas inúteis, Anabella inútil. Assassina, é isso o que pensam de mim, e é isso o que sou. De fato. Se não fosse por mim, Vinicius não teria tirado a própria vida. Desde então, nada me importa. Nem mesmo a vida do meu filho. “Filho”, é difícil chamá-lo assim, a meu ver, seria só mais um bebê com HIV no mundo. Mais um de quem teriam nojo. Mais um cuja existência seria abominável. É melhor que nem exista. Nada que venha de mim será bom. Nem o pai dele era bom, conseguiu ser idiota ao ponto de ficar doente. Eu tentei avisar, mas ele quis da forma dele, que seja, não me importo. Nada me importa.”

Anabella esmagou o cigarro com fúria no cinzeiro, e passou a beber o vinho depressa.

“E eu? Quem sou? Um nada. Será que fui alguém um dia? Nunca soube bem o que fazer aqui. Se Deus existe, ele nunca gostou de mim. Não gostava do Vinicius, que um dia por acidente, contraiu o HIV, mas não devo culpar a Deus por isso, a culpa é minha, só minha. A verdade é que eu sou só mais um verme rastejante sobre essa terra que aguarda a morte com euforia.”

E agora as lembranças pairavam no ar. Ela tentou ser uma boa pessoa, e na realidade isso sempre foi um dom natural, que ela não percebia. Só acreditava que jamais seria boa em algo, tampouco a melhor. Quando criança, questionava os pais constantemente sobre a existência de alguém que ouvira falar sobre na televisão. O tal do “Papai do Céu” que as amiguinhas sempre falavam antes de dormir. Naquela noite, ela bateu na porta do quarto da mãe, que a abriu muito irritada e gritou com a filha:

- O que você quer Anabella?!

- Mamãe, quem é o Papai do Céu?

- Um cara que nunca se lembrou de nós.

- Mas me falaram que devo conversar com ele, então o que faço se ele não se lembra de nós?

- Então durma Anabella.

A mãe bateu a porta no narizinho da pequena Anabella, que foi dormir, sem nunca ter conhecido quem era o tal Papai do Céu, tudo o que conheceu foi o desprezo, por toda a vida.

Seis meses após aquela noite em que Anabella fumava e questionava a vida, foi encontrada morta em um beco escuro por alguns policiais. Sem ninguém que reconhecesse o corpo, foi enterrada como quando em vida, achava que deveria: Uma indigente.



Dedicado à uma velha amiga. Baseado em fatos reais.