segunda-feira, 2 de setembro de 2013

Brisa fria

Primeiro foi uma lágrima, que nem queria sugir. Depois, outra lágrima caiu sobre o travesseiro. O silêncio do quarto, o tumulto da mente, e um choro de dois minutos apareceu. Calou-se. Rastejou até a vitrola velha, sequer sabia que disco era aquele. Ouviu. Uma música triste a fez lembrar de tudo o que tentara em vão esquecer. Dor que lateja na alma. O que faria? Sair gritando pelas ruas vestida apenas com uma camiseta regata e calcinha definitivamente não era uma boa ideia, muito menos às três da madrugada. Ela não tinha forças para procurar roupas, da mesma maneira que não tinha forças para colocar a vida em ordem. E tudo ficava assim, jogado em qualquer lugar do armario. Uma coisa sobre a outra. Tudo amassado e perdido.
Não conseguia pensar em nada além da dor. Dor. Dor. DOR. Era a única palavra pairando por seus pensamentos. Encolhia-se no leito enquanto apertava o ursinho com o qual dormia abraçada na infância. Lembrou-se de ter sido criança. Chorou. Não se conteve. Quis esvaziar-se de todo fardo, sentiu medo. O ursinho já não podia proteger. Estava escuro. Suas mãos estavam frias. Seu rosto queimava. E se ela tivesse uma overdose naquele instante? Soava melhor do que procurar ajuda, sobreviver e passar a vida ouvindo o quão estúpida sempre fora. Apertou os lábios, soluçou, quieta. Tomou fôlego. Chorou até que seus olhos se fechassem devagar. Afogou-se no pranto. Ninguém nunca mais viu aquele rosto.

terça-feira, 23 de julho de 2013

A última gota

A chuva cai lá fora.
Questiono-me: que sou eu, além de mais uma gota entre tantas outras?
Seja eu a última gota na taça, à qual ninguém deu valor
Seja eu uma gota da tempestade que paira
ou o resto de veneno nos lábios da mocinha que morre ao fim do drama, ou uma última lágrima, ou quem sabe, o que sobra de uma chama acesa entre dois corações humanos pela manhã.
Da mesma forma que a água desliza pelo vidro e desaparece no solo, minhas costas deslizam pela parede e logo me vejo ao chão.
Em silêncio por fora
Inundada por dentro

De rosto molhado, não de chuva.
De corpo dolorido que carrega uma alma pesada, ou talvez, seja a alma que carrega o corpo até que se canse dele.

Anestesie-me!
Anestesie-me, porque dói. Sim, fisicamente e de espírito também, mas vamos, anestesie-me depressa!
Enquanto tantos decolam numa busca desenfreada por si mesmos, pateticamente fujo de mim.
Tento não me encontrar.
Tenho cruzado ruas que em sã consciência, jamais chegaria perto.
Tenho tomado atitudes que não são minhas.
Tenho usado roupas emprestadas.
Tenho contado histórias que não vivi. - Não minto. Eu nunca falo.
Tenho amado as avessas e vivido as avessas.
Tenho tentado, a todo custo, ser presente sendo ausente para mim.
Não me quero. Não agora. Não assim.











E lá do outro lado da janela, continua a chover.

quinta-feira, 14 de março de 2013

Licantropia - parte II

A madrugada chegava ao fim. Junto à luz d'aurora, os rugidos surgiam acompanhando o som de uma caminhada ritmada, o volume era crescente, aproximava-se, eu sentia. A fera despertava, outra vez, faminta. Sempre com aparência inofensiva, creio que seja essa sua maior arma para atrair as vítimas. Costumava inspecionar a cidade durante sua ronda matutina, planejava cada passo durante a tarde e apenas quando o sol se escondia, a fera mostrava as presas. Tinha por hábito desfilar com suas formas semi angelicais em plena claridade.
Quando chegava a hora do bote, lutava com a caça até que a mesma estivesse incapaz de reagir. Encarava-a com ternura, e então, deixava sua bomba-relógio explodir. Já não havia clemência alguma. Em seguida, limpava os rastros e fugia. Levava consigo cada uma de suas culpas afagadas. Escondia seus mártires. Engolia sua dose diária de veneno próprio. Não murmurava. Não chorava. Nada balbuciou. Não contava seus segredos. Nunca descansa. Nunca volta atrás. Jamais dormirá.

quarta-feira, 23 de janeiro de 2013

Alter ego

Embora o meu ponto de vista sempre tenha sido assim
pacífico, firme e unicista sobre tudo
tenho vivido uma dualidade interna
bem e mal, paz e guerra, certo e errado
mal sei eu o que impera
Seria eu um rascunho apagado de malícia
ou um foco de luz convertendo-se em treva?
Parte de mim é como a lua cheia
misteriosa, encantadora, cintilante
chama olhares atentos
assiste calada a sacrifícios de sangue
ouve o uivo dos lobos
e sem nada pedir
cativa.
A outra parte é como a meretriz dançando sobre a mesa
sanguessuga, afoga o homem em aguardente
é a cólera
tua morte
teu medo
no mesmo silêncio da noite esconde seus crimes
suja, profana, herege, indecente
e sem querer, tem seu decreto:
Culpada.
Esbofeteada, dopada, imunda, usada
jogada às traças
à solidão
ao vazio
ao nada.
Incessável confusão
Ouvi uma confissão
"Antes pregava verdades, hoje as verdades a pregam."
Agora, ouve-se o lamento:
Pobre alma,
pobre alma...